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  • Jorge Alexandre Moreira

Canhões na Madrugada

Aqui em casa, a quarentena começou numa 6ª feira 13 do mês de março. Na manhã anterior, saí do sobrado onde fazia terapia, na Rua Pompeu Loureiro, em Copacabana, e bati o portão de ferro atrás de mim, sem a menor desconfiança de que não pisaria mais ali.




Segui pela rua a passos lentos. Cabeça cheia, como usual, após uma sessão. O assunto, não lembro, certamente, algo a ver com meu pai ou minha mãe. O carro estava a dois quarteirões de distância. Passando por uma banca, vi, num jornal, em letras garrafais:


"PANDEMIA".


Parei.


Eu acompanhava a progressão da doença, já há um tempo, com preocupação crescente, mas era um dos poucos. Nem mortos, tínhamos, ainda. O primeiro viria 3 dias depois, em São Paulo, um homem de 62 anos.


Escaneei as manchetes. Nada de muito diferente do que eu vira no dia anterior. Nenhum fato bombástico ou grande revelação. Mas havia o reconhecimento público do problema - na primeira página, para quem quisesse e quem não quisesse ver, e isso não era pouca coisa.


A caminho do trabalho, parei num supermercado. Não estava cheio, quando cheguei, mas foi vindo mais e mais gente. Quando passei pelo caixa, as filas já estavam grandes, quase todo mundo com carrinhos abarrotados. Fiz compras para um mês, com exceção do papel higiênico, que ainda não acabou e, provavelmente, durará mais três meses. Não me pergunte o porquê, não tenho a menor ideia.


De lá até aqui, muita água passou por baixo da ponte. Primeiro, minha mulher transferiu seus atendimentos presenciais para on-line. Depois, entregou o consultório. No meu trabalho, um programa de trabalho remoto que andava a passo de tartaruga, enfrentando ferrenha resistência, foi implantado da noite para o dia.


E a casa tornou-se nosso mundo.


Tivemos períodos de organização, faxina, receitas criativas da internet, rotina de exercícios. E bagunça completa, pia cheia de louça, marasmo, IFood até a morte e quantidades assustadoras de cerveja. Dias de trabalho, criatividade e esperança. E dias de medo, tristeza e procrastinação lodosa. Manhãs de família de comercial de margarina - amor para lá, amor para cá, sol de outono entrando pela janela. E discussões que fizeram o cachorro se esconder.

Falando nisso, o cachorro me mordeu e tivemos que ir ao hospital dar pontos, em plena festa do Covid. Um dia de cão (desculpe, eu sei, não consegui resistir). Depois, semanas tensas - eu desconfiado do cachorro, o cachorro desconfiado de mim e a família esperando, para ver se havíamos sido sorteados. Não fomos. Ou fomos daqueles afortunados que o vírus beija, sorrateiro, e se vai, sem deixar sinal, à exceção de anticorpos.


Tudo muito estranho. Difícil de acreditar que, em quatro dias, já serão três meses.

Noite adentro no home-office provisório com cada vez mais cara de permanente, as paredes do verde que eu mesmo escolhi, a cabeça pede arrego, a lombar grita, a alma pergunta "para que?".


Não vou reclamar - não ousaria, com tanto de horrível acontecendo a tantas pessoas em tantos lugares. Mas é estranho e cansativo, mesmo quando tudo funciona. Mesmo quando a comida é boa, a conversa gostosa e, ao final do dia, a lista de afazeres está totalmente riscada, é estranho, cansativo, triste e um pouco assustador. Olho as muitas janelas acesas, as ruas estranhamente silenciosas, os poucos carros a caminho de sabe se lá onde e sinto um ar de que há mais por vir. Mais de que, não sei. Tanto se fala, tanto se teme, tento não pensar. Mas o silêncio não condiz com o nível da turbulência.


Às vezes, de madrugada, de algum lugar aqui perto, soltam fogos. Não daqueles vagabundos e irritantes, de partidas de futebol, mas de um tipo que ilumina o céu e a face da montanha, seus estrondos graves e profundos, como gigantescos bumbos. Ou canhões.


Fogos. Longas sequências na madrugada, seu propósito um mistério. Eles me incomodam por razões que não consigo explicar.

 
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