Já fui amigo próximo de um dos policiais com maior número de mortes em combate em toda a polícia carioca.
A óbvia comparação com o super anti-herói Capitão Nascimento seria pobre, nesse caso. Meu amigo era o Soldado Universal e um pouco mais. Primeiro lugar em quase todos os cursos em que entrava, respeitado em tropas de elite de todas as polícias. Inteligente, corajoso e com uma motivação de aço. Extremamente competente, ainda, em sua carreira fora da polícia, que ele conduzia nos dias fora do plantão. Além disso, uma das pessoas no mundo com quem eu mais gostava de conversar.
Policial honesto e orgulhoso do seu trabalho, ele acreditava estar em uma guerra, embora nunca tenha ficado totalmente claro, para mim, quem ele considerava os reais inimigos.
Falo de meu amigo no passado pois, há muito, não tenho notícias dele. Não tenho nenhum motivo para acreditar que nada de mal lhe tenha ocorrido. Não com seu corpo, pelo menos.
No primeiro ano após ele ter ingressado em uma tropa de elite da polícia, dei a ele, de presente de aniversário, o livro "On Killing" ("Sobre Matar"), do Tenente Coronel norte-americano Dave Grossman. É um livro aclamado, polêmico, que trata sobre os efeitos que sofre quem mata por profissão, como policiais e soldados. O subtítulo do livro é "The Psychological Cost Of Learning to Kill in War and Society" ("O Custo Psicológico de Aprender a Matar na Guerra e na Sociedade").
"On Killing" é leitura obrigatória na FBI Academy e recomendada em muitas forças militares e policiais norte-americanas. Isso porque matar, ao contrário do que preconiza Hollywood, não é um ato natural do ser humano e gera consequências. Consequências psicológicas graves, que os entusiastas do "bandido bom é bandido morto" desconhecem ou preferem ignorar.
O custo psicológico de matar outro ser humano é tão sério que em muitos pelotões de fuzilamento era distribuída munição real e munição de festim, para que os soldados não soubessem quem, efetivamente, havia matado o prisioneiro.
No filme Tropa de Elite, de que gosto muito, a maioria dos fãs do Capitão Nascimento não vê, ou prefere não ver, que seu herói vive a base de remédios, que sua família está desmoronando e que ele é atormentado por fantasmas de seus atos. Parece pouco - cenas rápidas, em meio aos alucinantes tiroteios - mas, para quem vive tais momentos, é muito. É quase tudo.
Esse personagem foi magistralmente caracterizado e representado. A única cena que faltou foi o Capitão Nascimento, sozinho em casa, na calada da noite, colocando a pistola na boca e considerando suas opções.
O suicídio já supera as mortes em combate, como causas da morte de policiais. Em 2018, 104 policiais brasileiros tiraram a própria vida, enquanto 87 foram mortos durante o expediente, em confronto com criminosos. 104 são dois por semana e esses números são, é certo, menores que a realidade, pois o suicídio é uma questão problemática, para quem vai e quem fica. Nesse caso, além do suicídio ser problemático para as famílias e colegas de profissão, ele é, também, para o Estado, que não pode admitir que seus supostos super homens de farda sejam vistos como seres humanos em frangalhos, à beira de um ataque de nervos. Principalmente se grande parte do motivo para que esses homens estejam nessa miséria psicológica e espiritual sejam as políticas de opressão e extermínio encorajadas pelo próprio Estado, das quais esses homens são, meramente, o braço executor. Esteja certo: os suicídios de policiais, assim como as overdoses, são subnotificados.
Contribuem para essa miséria o fato de que esses homens estão sozinhos.
Não é figura de linguagem. Os entusiastas do "bandido bom é bandido morto" argumentam que seus arqui-inimigos ideológicos, "o pessoal dos direitos humanos", não procuram as famílias dos policiais mortos, apenas as dos bandidos. Isso é verdade em grande parte dos casos, mas é interessante observar que os supostos apoiadores dos policiais também não procuram ou oferecem apoio às famílias - nem dos policiais mortos em combate nem daqueles que tiram a própria vida. Nossos policiais, os executores dessa política covarde de opressão, estão absolutamente sozinhos.
Além disso, há uma incômoda verdade: pouca gente se sente à vontade, ao lado de assassinos. Eles têm um odor espiritual próprio, que deixa a maioria das pessoas desconfortável. É por isso, que assassinos, depois de um tempo na profissão, preferem a reclusão ou a companhia de outros assassinos. Foi a opção de meu amigo, pelo menos.
E se matar provoca consequências psicológicas graves mesmo em quem vê sentido no que faz, o que acontece quando o sujeito deixa de encontrar significado nas atrocidades que cometeu?
Pior: e se ele descobre que foi manipulado, a serviço de bandidos maiores?
O que acontece com a cabeça de alguém que matou para limpar uma favela dos traficantes e depois vê aquela área invadida por uma milícia tão ou mais violenta que os antigos criminosos?
O que acontece com a cabeça de alguém que se imaginava em uma guerra santa e, depois, vê o governador que emitiu suas ordens condenado a 200 anos de prisão?
Que rostos, que momentos voltam do passado para te atormentar?
Quando dei o livro "On Killing", para meu amigo, em seu primeiro aniversário como assassino pago, ele riu. Achou super interessante, agradeceu, mas considerou minha preocupação engraçada. Eu disse a ele que a coisa era séria. Matar era sério. E queria dar-lhe algo que pudesse ajudá-lo, pois sabia que ele tinha uma essência boa.
Nos encontrávamos, mas, por muito tempo o livro não apareceu em nossas conversas. Ele era leitor ávido como eu, devia ter muito em sua fila de leitura. Depois, começamos a nos ver com frequência cada vez com menor. Um dia, encontrei com ele, depois de vários meses. Achei-o mais sério, mais mal-humorado, suas opiniões sobre a vida e o mundo mais amargas. Talvez fosse o dia. Com expressão sombria, ele disse, certa hora:
"Li aquele livro"
"Gostou?"
"É foda."
"Se identificou com alguma coisa?"
Ele bebeu do chopp e disse, após alguma reflexão:
"Os pesadelos já começaram."
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