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  • Jorge Alexandre Moreira

Antônio, um homem que veio de um Brasil que você não conhece

Antônio está morto e é por isso que essa história pode ser contada. Quando o conheci, trinta e tantos anos atrás, ele trabalhava na portaria de um prédio na Praia do Flamengo. Foi o único emprego que o vi ter, até sua morte, poucos meses atrás. Era um bom porteiro e um homem assustador, se você estivesse do seu lado errado.

Durante a década de 80, havia muitas brigas de gangues na Zona Sul do Rio. Festas em playgrounds eram usualmente invadidas para causar confusão, provocar brigas, até roubar rádios de carros nas garagens.


Não no prédio de Antônio, se fosse seu turno. A garotada era perigosa, mas ele era mais e quando desembarcou no Rio, já trazia algumas marcas no cinto.


Existem homens com os quais é melhor não arrumar problemas, não importa quem você seja, e Antônio era um deles. Quando o conheci, ele dizia ter vindo do sertão nordestino para o Rio vinte anos antes, o que significava algum momento na década de 60.


Antes de falar sobre esse lugar, é interessante falar das circunstâncias que motivaram a saída de Antônio de lá. Não lembro a razão, mas um delegado deu-lhe um tapa na cara. À noite, Antônio adentrou o forró que esse delegado frequentava e encontrou o dito cujo sentado em uma mesa, bebendo. Ao vê-lo, o homem levantou, tentando puxar a arma. Tarde demais. Antônio encostou o revólver em sua orelha e atirou. Ele caiu sentado na cadeira outra vez, já um cadáver.


- Ele ficou lá sentadim, Alexandre. Quietim.


Se um delegado, em terras mais civilizadas como as nossas, onde algumas leis funcionam, não é alguém com quem a maioria das pessoas quer se meter, imagine no sertão nordestino? Mas há homens, como esse, que após uma ofensa, espera não numa esquina, na calada da noite. Não numa tocaia. Ele vai ao local que esse homem frequenta e o mata diante das pessoas que ele conhece.


De fato, há pessoas com quem não se deve arrumar problema.


Antônio morou em uma casa no sertão que era tão isolada que levava um dia de caminhada para chegar à casa mais próxima. Eu não sei o que é mais surreal, a distância em si ou o fato de que as pessoas a medem em dias, como hobbits. O fato é que as histórias desse lugar e dessa época estão entre as mais insanas que já escutei em minha vida.

Certa vez, quando criança, Antônio presenciou uma disputa entre duas famílias, pela posição de uma cerca. Sim, eu sei. As pessoas estão tão distantes umas das outras que as distâncias são contadas em dias, mas, ainda assim, alguém está discutindo pela posição de uma cerca. É o tipo de coisa que faz você se perguntar se não é melhor vir logo o meteoro. Aguarde alguns instantes e escute a história, você logo vai ter certeza.


Antônio e outra criança assistiam a cena à distância - cerca de dez pessoas de cada lado da cerca, gritando umas com as outras, todas armadas de facões, peixeiras, enxadas. No meio da discussão, um homem veio correndo lá de trás com uma foice. Pulou, pisou no arame mais alto da cerca, para tomar impulso, e desceu, brandindo a foice como um personagem de desenho japonês. A lâmina atingiu um homem no ombro esquerdo e cortou-o até o abdômen. Esse foi o primeiro movimento: um homem sendo dividido em dois. E a partir daí, as coisas não melhoraram. Gente pulou para um lado e para outro. A poeira subia e o sangue jorrava. Homens feridos de morte se debatiam no chão, um homem sem braço brandia um facão com a mão que lhe restava.


Há um fato interessante, sobre essa cena dantesca: talvez você tenha assistido "Coração Valente", de Mel Gibson, de 1995. Se não assistiu, assista, é um puta filme que ganhou cinco Oscars, mas esse não é um post sobre dicas de cinema. O filme causou grande impacto na época e um dos motivos foram as cenas cruas e realistas de batalhas medievais. Hoje, não parece tanto, com tantos filmes com cenas bem feitas, mas, na época, foi um marco. Alguns anos depois do lançamento, o filme estava passando na Globo e Antônio estava na casa de seu sobrinho, que era meu amigo. Quando apareceu a cena da batalha, Antônio deu um pulo do sofá e um grito.


- É assim! É assim mesmo que é!


Nesse lugar aprazível, onde batalhas medievais eram travadas 50 anos atrás - e, muito provavelmente, ainda o são até hoje - não eram só famílias que discutiam acaloradamente questões de limites. Crianças também.


Antônio e a irmã brigavam tanto que a mãe riscou uma linha no chão de poeira do quintal e mandou cada um brincar de um lado. Mas Antônio fica implicando, colocando o pé na linha, para provocar a irmã.


Eu já disse que os "brinquedos" que eles tinham eram as próprias ferramentas de fazenda?

Você sabe que isso não vai acabar bem, não sabe?


A irmã de Antônio deu com o facão no meio de seu pé - provavelmente, querendo dizer que, se estava para dentro do terreno dela, lhe pertencia. Quase decepou-lhe o pé. Trinta anos depois, Antônio ainda tinha a marca, para mostrar.


Foi nesse lugar, também, que o menino Antônio ouviu dizer que, uma vez que um tatu entrava no buraco, não havia mais jeito de puxá-lo para fora. Mas o menino Antônio, você já ter percebido a essa altura do campeonato, não era de crer, sem ver. Decidindo que um tatu particularmente grande não iria escapar da caçada, catou-o pelo rabo, com ele já entrando na toca. O tatu foi e o pequeno Antônio foi junto. Entrou até os ombros, com os braços esticados para dentro, e ficou totalmente entalado, sem conseguir se mexer. Sabe quando você era criança, ficou com a cabeça entalada na grade do prédio e achou que estava com problemas sérios? Bom, essa é a versão raiz dessa história. Para você que nasceu na cidade e foi ao Google ver o que era "tatu", eu explico: tatus tem unhas como lâminas, capazes de cavar buracos em terra dura como pedra, que era precisamente onde Antônio estava preso. Ele só conseguia mexer - um pouco - a cabeça. Deu com a parte de trás dela na terra até desistir. Pensou que fosse morrer e, eventualmente, dormiu. Foi encontrado no final de tarde e ajudaram-no a sair daquela vexatória e perigosa situação. Eu imagino a cena que deve ter visto a pessoa que o encontrou, com as pernas e metade do tronco para fora de um buraco no chão.


Antônio não deixou de ser quem era por ter vindo por ter vindo para o Rio de Janeiro. Na década de 90, o Aterro do Flamengo, à noite, era um lugar bastante perigoso. Antônio andava por lá, sempre armado. Às vezes, encontrava problemas, que nunca eram maiores do que ele mesmo. Certa vez, saiu no jornal: uma mulher chegou de manhã na praia, ainda vazia, estendeu sua canga na areia, começou a cavar para fazer um travesseirinho e encontrou uma mão. Chamou a polícia. Um cadáver havia sido recém-enterrado na praia. Tempos depois, eu soube: o cadáver era um assaltante que escolhera mal o alvo. Eu não preciso dizer qual era o alvo, você sabe quem.


Com o tempo, meu contato com Antônio foi diminuindo. As madrugadas que passava ouvindo suas histórias, na portaria de seu prédio, começaram a ficar cada vez mais espaçadas. Até que viraram encontros casuais, na rua, que sempre geravam muitas risadas. Depois que saí do bairro, encontrei-o poucas vezes. Por que não o procurei mais? Ele sempre esteve no mesmo lugar. Adultos são idiotas, é a única resposta que posso lhe dar.


Antônio morreu há alguns meses. Me disseram que estava com a saúde debilitada há tempos. Nunca tive essa impressão, quando o encontrava, mas uma coisa a respeito de Antônio era que ele não contava para ninguém quando estava doente. E quanto pior ele estivesse, quanto mais dor sentisse, mais empinava o queixo, esticava a coluna e dizia não estar sentindo nada.


Pode parecer ignorância, daqui de onde estamos, mas quando você vem de um lugar onde demonstrar fraqueza significa ter um alvo pendurado na testa, faz todo o sentido do mundo.

Além disso, experimentei esse método algumas vezes - estar doente e, além de não contar para ninguém, não deixar ninguém perceber. Pode ser psicológico, mas tive a clara impressão de que a doença foi embora mais rápido.


Uma coisa interessantíssima a respeito de Antônio eram suas metáforas e os apelidos que ele dava às pessoas e que só ele usava. Ele me chamava de "mão quebrada", por conta de um incidente na minha infância com uma porta de elevador que quase me custou um dedo. Ao sobrinho, que era muito gordo, na época, ele chamava de "Cepo". Cepo, aquele toco de madeira onde se corta carne.


Mas a melhor metáfora de todos os tempos vem de um caso de assombração. Claro, você não mora a um dia de caminhada da pessoa mais próxima sem casos de assombração fazerem parte da sua cultura local.


Antônio disse que já tinha visto um lobisomem.


Segundo ele, era igual a "um saco de garrafas sem volume".


 

Curtiu? Esse post faz parte da Seção Humanos de Outro Planeta, com histórias reais incríveis sobre pessoas de quem você nunca ouviu falar. É aqui que você vai encontrar histórias reais de forças especiais brasileiras e o incrível relato do dia em que uma briga de cachorros quase levou o bairro do Flamengo a uma guerra civil.

 

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